Descobri que só enxergo com um olho
Não, você não leu errado. O que fazer ao descobrir, no médico, que um dos seus olhos nunca funcionou de verdade — como se tudo o que você viu até hoje fosse só uma parte do que poderia ter sido?
A ignorância é uma bênção. Esse ditado dos antigos nunca fez tanto sentido pra mim quanto hoje, quando decidi quebrar as estatísticas da saúde masculina da minha família e, finalmente, fazer um exame de vista. Com um toque especial: o primeiro com plano de saúde, depois de dezoito anos usando óculos.
Por isso, fui ao melhor hospital especializado em olhos da cidade — aquele que meus pais sempre quiseram me levar quando eu era criança, mas nunca tiveram dinheiro pra isso. Agora eu podia. Estava lá. Quase como uma reparação histórica na minha cabeça.
Mas, apesar da excepcionalidade da ocasião, meu objetivo era o de sempre: entrar no consultório, passar vergonha por não conseguir dizer qual letra está na parede e responder sem nenhuma convicção enquanto o médico pergunta qual lente parece melhor. Nada novo.
Entrei. O doutor fez todos os trâmites clássicos de um exame de vista. Mas, no meio da consulta, ele parou, me olhou sério, ficou vários minutos analisando minha pálpebra como se tivesse descoberto uma doença rara, e então disse:
— Já te falaram que você praticamente não enxerga com o olho esquerdo?
Não é o tipo de pergunta que você espera receber numa quinta-feira chuvosa. Ainda mais eu, que uso óculos desde os três anos, por causa de um estrabismo severo. E não bastasse isso, ainda carrego mais de 3 graus de hipermetropia e um leve astigmatismo, só para não dizer que não tenho. Já estava habituado com a ocasião.
Mas então ele me explicou que, na verdade, o estrabismo não tratado da minha infância havia evoluído para um quadro de ambliopia — o famoso “olho preguiçoso” —, quando um dos olhos não se desenvolve o suficiente e o outro acaba compensando. Ou seja, só enxergo com um dos olhos.
E o pior: eu tinha até os oito anos pra resolver isso.
Não culpei meus pais, se querem saber. O tratamento certo para estrabismo já é caro agora — imagina no começo dos anos 2000, sem plano de saúde? Não tinha como. Ainda que eu imagine a dor de ver um filho com um problema que você não consegue resolver. No entanto, no fim das contas, a vida que enxergamos é a vida que nos é oferecida.
Mesmo assim, passei o dia inteiro pensando nisso. O que eu faço com essa descoberta? Mais exames? Esqueço? Afinal, vivi até aqui sem saber — por que teria que saber agora? Mas não dá. Porque é impossível não pensar que tudo o que vi até hoje, achando que via por completo, na verdade era só uma parte do que poderia ter sido.
Isso sempre foi uma inquietação pra mim. Talvez por ser jornalista, tenho esse impulso de querer ver tudo, não perder nada. Só a sensação de que algo me escapa da vista já me dá uma ansiedade gigante. E, se tratando da vida, não são poucos os momentos em que a gente se sente assim. Nunca conseguimos ver tudo.
Com o diagnóstico, meus amigos (obviamente) começaram a não economizar nas piadas. Mas dividiram a risada com um certo clima de preocupação. Ainda mais depois que o médico disse que, se eu quiser investigar mais, talvez descubra que posso ser considerado deficiente visual e ter direito como Pessoa com Deficiência (PcD).
Ainda não sei o que pensar, muito menos o que fazer. Não vou negar que há uma paz em tentar ignorar as nossas limitações. Até porque, mesmo sem enxergar com um olho, essa é a única vida que eu conheço. Talvez isso já a torne completa. Ao mesmo tempo, fico me perguntando o que mais posso encontrar se continuar procurando — e isso me deixa curioso.
Nos dois casos, o médico já tinha uma resposta. Quando perguntei o que deveria fazer agora, depois de descobrir a ambliopia — claro, sem expor toda essa crise existencial —, ele respondeu curto, direto, quase como quem queria encerrar o expediente mais cedo:
— Viva.
Acho que vou começar por isso.
puxa, muito bom! ler isso comprova que, pra enxergar com toda a inteireza possível, não são precisos dois olhos funcionando bem. nada se compara ao olhar sensível da alma de um escritor que atravessa a pele do mundo 🦋